Um passeio à Pedra do Leme (09/07/2011)
Carlos G. Keller
Domingo passado resolvi fazer um passeio de bicicleta pela ciclovia da orla carioca, seguindo até o seu final, que fica na Pedra do Leme. Leme é o canto esquerdo da praia de Copacabana (olhando-se para o mar). Ali, os últimos quarteirões de Copacabana diferem do burburinho do resto da praia e formam um bairro provinciano e bucólico chamado de Leme. O meu objetivo era ver e fotografar as touceiras de Brassavola tuberculata que existem no local, assim como dar uma apreciada no paisagismo natural daquele rústico habitat. A Pedra do Leme é na verdade, uma montanha de pedra encimada por uma luxuriante floresta tropical e essa pedra, ao chegar à praia de Copacabana, despenca num violento paredão vertical de rocha nua, formando um costão onde as ondas do mar passam ao largo, para quebrarem na areia da praia. Nas ressacas vindas do sul, no entanto, as ondas arrebentam contra a pedra sem cessar, chegando a carregar turistas desavisados, que circulam tirando fotos pela passarela ao longo do paredão. Muitos pescadores também já morreram afogados naquele local. Acima da passarela ficam as bromélias e as orquídeas. É impressionante de se ver como nesse local inóspito, plantas lindíssimas conseguem sobreviver e se agarrar, sem que os fortes ventos e as chuvas torrenciais as desloquem de onde estão. Acima, na primeira foto, vocês podem ver a Pedra do Leme por inteiro, com o Forte do Leme no topo. Na segunda foto, vê-se à esquerda, a leve subida de acesso ao patamar de onde sai a passarela que circunda a pedra. Mais abaixo, na foto seguinte, podemos ver a deslumbrante paisagem da praia de Copacabana, quando vista da passarela, tendo-se a pedra às costas.
Ao subir a pequena rampa da segunda foto, passa-se por um pátio onde há um quiosque de venda de comida e bebida e chega-se ao início da passarela propriamente dita. É um estreito caminho ao longo da parede de pedra, o qual a contorna por um bom percurso até se acabar em nada, numa curva que já atinge o mar aberto.
No ponto exato da foto acima, se ali você estiver e olhar para o alto, verá lindas touceiras de Brassavola tuberculata, além de bromélias, cactos, tillandsias e antúrios, concentrados nas depressões da rocha.
As Brassavola tuberculata são as touceiras cinzento-rosadas que se vê acima, com as suas folhas teretes parecidas com rabos de rato. Elas provavelmente existem em condições mais favoráveis no alto da pedra e as sementes dessas plantas do alto, descem por gravidade ao longo do paredão e algumas delas acabam germinando em pequenas frestas na pedra, cheias de material orgânico acumulado.
Assim que uma muda pioneira se estabelece na fresta, as suas raízes vão formando uma rede por cima da pedra ao seu redor e essa rede de raízes vai agarrando o máximo possível de matéria orgânica que desce do alto da pedra, tentando fixá-la entre os seus espaços vazios.
É possível ver essas raízes brancas bem nitidamente na foto acima. À medida que nessas raízes formam-se depósitos de material orgânico, uma nova área de substrato colonizável fica à disposição da planta, propiciando o alastramento da touceira. Esta é uma boa dica de cultivo de Brassavola. Como vocês podem ver, as orquídeas desse gênero gostam de um ambiente muito claro, o que deixa as folhas com a cor acinzentada com nuances rosados, ao invés do costumeiro verde que conhecemos. Não se engane, no entanto, pensando que as Brassavola não gostam de água.
Brassavola tuberculata |
O cultivo da Brassavola deve ser assim, nada de vaso com substrato dentro, nada de placa de material que retém umidade. O melhor mesmo para ela é a placa de peroba ou um galho de madeira nobre bem áspero, de preferência fixando-se a planta na vertical. Abaixo vocês poderão ver uma Brassavola nodosa 'Susan Fuchs' FCC/AOS, cultivada dessa maneira. As folhas estão verdes e não cinza-rosadas, pois eu talvez não tenha no orquidário a luz necessária. Não sei também se a Brassavola nodosa fica com as folhas da mesma cor que a Brassavola tuberculata quando exposta ao sol intenso. Seja como for, acho que aquelas Brassavola tuberculata que vi na Pedra do Leme estão numa situação limite e embora isso propicie ocasionalmente uma boa floração, dar à sua planta condições mais amenas e uma vida mais mansa não fará mal algum. As minhas Brassavola são cultivadas debaixo de um sombrite de 50% e sem plástico de cobertura por cima. Dessa maneira, elas recebem o sereno da noite e a água da chuva. Por estarem afixadas em madeiras verticais, essa água que as atinge logo é escorrida, não causando a estagnação que gera o aparecimento de fungos nas folhas ou podridão nas raízes. Em regiões arejadas, as plantas de Brassavola poderão ficar ao ar livre, a sol pleno, desde que recebendo regas freqüentes. Não se esqueça de adubá-las semanalmente com um adubo foliar 20-20-20 (nitrogênio-fósforopotássio) e na época do verão, época de crescimento, mude para um adubo de composição rica em nitrogênio, como por exemplo, um 30-10-10 ou algum adubo orgânico. Na natureza, o verão corresponde à época que mais chove e portanto, desce mais chorume nitrogenado do alto das pedras. Existem compostos com micronutrientes que são vendidos separadamente e são muito benéficos se adicionados periodicamente à adubação. Infelizmente na minha visita ao local, poucas foram as flores que pude fotografar e mesmo assim, as duas que estavam acessíveis, já estavam murchando. A identificação da espécie como sendo Brassavola tuberculata, no entanto, foi confirmada através de excicatas de flores retiradas do local por botânicos, as quais estão depositadas no herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Tillandsia araujei |
Você orquidófilo, não deve ficar obcecado pelas orquídeas à ponto de não ver as demais plantas ao seu redor. Naquele local há um verdadeiro jardim do Éden, uma enorme fonte de inspiração para qualquer paisagista. O maior paisagista que conheci, Roberto Burle Marx, residiu desde os 7 anos de idade e toda a sua juventude, a cerca de 200 metros dessa pedra, na mesma Rua Araújo Gondim em que residia o urbanista Lúcio Costa. Tenho certeza que Burle Marx colocou nos seus jardins muito do que ele viu na infância na Pedra do Leme. Isso é evidente nas suas obras. Foi Lúcio Costa quem descobriu Burle Marx, ao passar a pé em frente ao jardim que o então adolescente tinha na sua casa. Impressionado com a inovadora técnica do moço, o renomado urbanista o convidou para um primeiro trabalho. O resto é história... A Rua Araújo Gondim ficava bem no sopé do morro da Babilônia, que fica nos fundos do bairro do Leme e teve o seu nome mudado para Rua General Ribeiro da Costa. Hoje essa rua está quase toda engolida pela favela que infelizmente existe no local.
Mostro abaixo algumas fotos dos canteiros naturais existentes na pedra. Para que vocês tenham uma idéia da beleza da natureza, mostro desde as aglomerações de Tillandisa araujei, pequenas jóias incrustadas na rocha, até as enormes Alcantharea glaziouana, bromélia nomeada em homenagem ao paisagista francês do século XIX, amigo de D. Pedro II, Auguste Glaziou (1833-1906). São dele, por exemplo, os jardins do Campo de Santana, Quinta da Boa Vista, Passeio Público e Palácio do Catete, todos existentes até hoje nacidade do Rio de Janeiro.
Alcantharea glaziouana |
Uma planta também bastante interessante que pode ser vista no local é o magnífico Antúrio Imperial, Anthurium coriaceum. Enquanto que a maioria dos antúrios gosta de sombra, local fresco, solo fofo e um pouco de umidade nas raízes, este é daqueles que pode ficar exposto à situações de muita luz e arejamento. Uma meia sombra, no entanto, deixa as suas folhas mais largas, mais planas e sem máculas. Não se esqueça de cultivá-lo em um vaso bem apertado, pequeno para o tamanho da planta e com ótima drenagem.
Anthurium coriaceum |
Eu nos meus jardins, muito me inspiro no que vejo na natureza. Vocês podem ver abaixo, uma pedra compondo a lateral de uma piscina, na qual eu plantei orquídeas, samambaias e bromélias, à maneira do que pode ser visto nas fotos da Pedra do Leme. É um jardim rupícola naturalista. Atrás da casa, onde existe uma grande área de pedra, a mesma técnica paisagística foi empregada, como pode ser visto abaixo:
Poucos são os meus clientes, no entanto, que possuem um gosto apurado o suficiente, para apreciar um jardim tão natural quanto os que eu gosto de fazer. Isso me obriga na maioria das vezes, a recorrer à banalidade para satisfazer a demanda do mercado, plantando florzinhas pelo chão e fazendo contornos com folhas muito coloridas. Só não cheguei ainda ao ponto, de pintar as pedras de branco ou enfeitar os canteiros com esculturas dos 7 anões.
À medida que se sobe na montanha de pedra, a inclinação se suaviza, pois ela tem um chanfrado no alto, de maneira que os depósitos de matéria orgânica naquela área se fixam com mais facilidade e portanto, têm uma espessura bem maior do que nos paredões. Isso propicia uma maior diversidade de plantas ali enraizadas e podemos ver até a presença de árvores e palmeiras.
Acima se pode ver o berço das plantas que estão no paredão vertical.
Ao descermos a montanha, a inclinação se acentua gradativamente e quando se chega a 45 graus aproximadamente, a vegetação densa e alta vai desaparecendo aos poucos e alguns arbustos solitários começam a surgir, como por exemplo, uma espécie de quaresmeira, com folhas peludas, encimadas por lindas flores de um roxo-violeta muito forte (Tibouchina heteromalla). Ela pode ser vista nas fotos abaixo. Estas são plantas convencionais, necessitando de um cultivo bem mais simples do que as que vivem nos paredões a 80 graus de inclinação, sendo essas outras, muito mais especializadas.
Tibouchina heteromalla |
O entorno dos arbustos nesse setor da rocha é muito bonito, pois a copa desses arbustos costuma ser bem baixa e acaba por tocar na pedra lisa, escondendo a canela da planta, a qual, assim como as patas dos pavões, não é coisa lá muito agradável de se ver. Isso pode ser visto na segunda foto acima. A pedra nua por si só, um lindo granito cor de mostarda entremeado de veios negros, bastaria para encher os nossos olhos de admiração.
Bem, o nosso passeio vai chegando ao fim e agora é hora de sair do sonho idílico de uma floresta de Rugendas e voltar à civilização. No caso da Pedra do Leme, isso é fácil, basta dar meia volta com o corpo. Oposta ao granito acima fotografado jaz fervilhante a Copacabana que todos conhecemos. Estranhamente, o barulho do mar encobre o barulho da cidade e isso propicia o distanciamento necessário, para que possamos nos concentrar nas belezas daquele santuário agreste, esquecendo-nos de onde realmente estamos.
Vou voltando à pé ao local onde deixei a bicicleta e a grossa corrente com cadeado que a prende a um poste me desperta para a cruel realidade da cidade grande, mas mesmo assim uma cidade linda. Desço de bicicleta a rampa após o pátio com o quiosque e chego até a ciclovia, por onde sigo em direção à minha casa.
À direita, dou uma última olhada na rica floresta que cobre os fundos do Leme e vejo lá atrás, em segundo plano, o topo do Pão de Açúcar encimado pela casinha onde se encaixa o bondinho do teleférico.
Um pouco mais à direita, já quase às minhas costas, pude ver uma estranha construção pendurada sabe-se lá como na rocha vertical. Tinha a aparência de ser coisa antiga. Atrás dela existe uma espécie de escadaria íngreme que leva à um terraço aberto, o qual serve de entrada para uma gruta escavada na rocha.
Esse é um reservatório de água escavado dentro da montanha e que serve as duas partes do Forte Duque de Caxias (ex Forte do Leme), a que está ao nível da praia e a outra, lá no alto do morro, em cima da Pedra do Leme. Um segundo reservatório enorme que poucos conhecem, está escavado dentro da Pedra do Cantagalo, na Lagoa e a sua entrada é pela Rua Gastão Bahiana. Como imaginar a existência de uma coisa dessas? Um enorme buraco cheio de água dentro da rocha? Deve ser muito interessante de se ver. O Forte Duque de Caxias que existe no topo da Pedra do Leme, foi construído em 1779 para proteger a entrada sul da Baía de Guanabara. Em 1922 ele recebeu 2 tiros de canhão, dados pelos revoltosos do Forte de Copacabana, na outra ponta da praia. Um dos tiros atingiu o refeitório matando 4 soldados. Hoje, uma coisa dessas é digna de um desenho dos Simpsons. Inimaginável...
Começa a cair a noite, as luzes se acendem para iluminar a praia e enquanto pedalo pela ciclovia, posso ver o estranho reflexo da luz fria nas folhas dos coqueiros. As famosas ondas em preto e branco desenhadas na calçada de pedra portuguesa, marca registrada do Rio de Janeiro, me seguem o tempo todo. Os postes das redes de vôlei são uma visão fantasmagórica na praia agora amarela.
Bateu a fome e o jeito é dar uma parada em algum dos recentemente inaugurados quiosques do calçadão, onde aproveito para dar uma xeretada e ver como ficou a remodelação. No início, achei que esses quiosques, agora maiores, escondiam a visão da praia, mas depois, uma vez que são vazados e por estarem bem distantes entre si, mostraram que não chegam a comprometer a amplidão da vista.
Pastel de camarão e água de côco? Aceito. Uma delícia. Agora já se pode sentar num local limpo, uma espécie de deck sobre a areia, coberto por grandes guarda-sóis brancos, para saborear a comida vendo de perto as ondas do mar e as pessoas se divertindo na praia.
Para completar a noite, um grupo de músicos de jazz muito bons mesmo, deram uma cancha grátis a quem ali estivesse. Dava a vontade de ir ficando e ficando... Mas eu tinha que voltar para casa.
Novamente na ciclovia em direção ao Arpoador, não resisto e paro para ver o que vendiam alguns camelôs bolivianos que estavam com grandes panos estendidos na calçada. Expunham ali todo tipo de produtos chineses. Os conhecidos "gadgets", baratos e cheios de novidade. Bolas cheias de água que acendiam luzes coloridas ao serem arremessadas ao chão, relógios iluminados internamente por leds que iam mudando de cor vagarosamente, blocos de vidro com a figura do Cristo Redentor desenhada a laser no seu interior e até um curioso cofrinho de vidro. Punha-se lá dentro, através de uma ranhura na sua parte superior qualquer moeda. Quando a moeda entrava no cofrinho através da ranhura, ela simplesmente desaparecia. Lembro aqui que o cofrinho era de vidro. Via-se tudo lá dentro. E nada de moeda... Não sosseguei até que o vendedor, um boliviano desdentado e magrela, de longos cabelos lisos e todo coberto por tatuagens, concordasse em abrir para mim o cofrinho, revelando o segredo. Um engenhoso jogo de espelhos era o responsável pelo sumiço da moeda. Acho que ele abriu o cofrinho mais para recuperar as moedas, pois enquanto eu investigava a mágica, enchi o cofrinho com as moedas dele e não as minhas. Para não ser aquele chato que olha tudo, mexe em tudo e não compra nada, comprei para as minhas primas baladeiras, umas meias de seda transparente, cobertas de desenhos imitando tatuagens. Veste-se a meia na perna ou no braço (é só um cilindro) e pronto, instantaneamente a pessoa se transforma em um punk! Guardei as meias em um saquinho para depois as lavar em casa, pois o camelô não primava pela higiene. Parecia quase um mendigo, coitado.
Novamente tomo o rumo de casa, dessa vez decidido a não mais parar até entrar na garagem do prédio, mas não resisti a uma última pausa. Quis ver os barcos de pesca que trazem peixes para abastecer a pequena peixaria existente na praia, no Posto 6 de Copacabana. Era uma visão magnífica! Os barcos ali parados, o mar calmo atrás e o Forte de Copacabana todo iluminado ao fundo. Uma visão inesquecível...
Chego finalmente em casa. Cansado mas feliz por ter passado uma tarde tão agradável e por saber que tudo o que eu vi estará sempre ali, disponível para novas visitas. As coisas simples e baratas da vida são mesmo as mais compensadoras, mas aí me pergunto: é simples e barato ter o permanente acesso a essa magnífica orla do Rio de Janeiro? Carlos.
Um comentário:
É um prazer ler a curtição desse "João do Rio" das orquídeas. Essa leitura prova a multiplicidade de olhares que uma cidade pode proporcionar. Depende, apenas, de quem e como se olha. Grande Carlos, aquele abraço!
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