domingo, 17 de julho de 2011

Homenagem a David Miller

Acabo de saber do falecimento do grande Orqudófilo de Friburgo-RJ, Sr. David Miller, autor de dois importantes livros de orquídeas "Serra dos Órgãos - sua história e sua orquídeas" e "Orquídeas do alto da Serra" , que tanto contribuiu para o levantamento das orquidaceas encontradas nas matas de Macaé de Cima, RJ e preservação das orquídeas na Mata Atlântica. Natural da Irlanda, radicou-se no Brasil na década de sessenta. Faleceu em 16 de julho de 2011.

"Você encontra, se realmente procura"

David Miller
Richard Warren
Era realmente uma visão fantástica. Uma visão de provocar um suspiro profundo e deixar qualquer um boca aberta; uma visão que provocava um efeito que já havíamos sentido várias vezes quando encontramos uma planta rara em total florescimento pela primeira vez. Há também uma outra sensação normalmente associada à primeira e que "macados velhos" como nós já aprenderam a suprimir, como fizemos. A vontade de coletar a planta.
Algo como um homem feliz com seu casamento que percebe o olhar interessado de uma jovem e maravilhosa mulher em um coquetel. Com dificuldade, você suprime o desejo de manter o contato. Nós, com dificuldade, conseguimos suprimir o desejo de coletar a planta. Dois dias antes, Girson, mateiro e guarda florestal de uma área de 1.000 hectares num vale contíguo à nossa floresta-jardim, havia passado em nossa casa com seu sofrido fusca branco e nos contou que as "dormany" já estavam florescendo. Naquele exato momento ao redor de uma cervejinha "ritual", combinamos de nos juntar a ele em sua solitária cabana na floresta por três dias, para estudar e fotogragar as "dormany" por um período de dois dias.
Cattleya dormaniana foi trazida à atenção dos entusiastas das orquídeas pela primeira vez na Inglaterra de 1879, tendo sido encontrada nas montanhas do Rio de Janeiro, Brasil, por um tal de Henry Blunt, que as enviou para a Inglaterra, onde vieram a florescer na coleção de um tal de Sr. Charles Dorman, de Sydenham, um subúrbio londrino. Daí o nome lhe foi dado. Hoehne, escrevendo nos anos 40, admitia nunca ter visto a planta mas ainda assim sugeria que era um híbrido natural, enquanto Watson, em 1903, nem mencionava a planta e Pabst a coloca como vinda da floresta tropical montanhosa do Estado do Rio de Janeiro. Withner dá seu local de origem como sendo "as montanhas cobertas de nuvens", informação que provavelmente conseguiu de Fowlie. Ainda nos lembramos quando, alguns anos atrás, o "encarregado" de um dos orquidários comerciais de Petrópolis nos perguntou se sabíamos a localização desta planta em Nova Friburgo, uma vez que havia rumores de que ela havia sido encontrada por lá (provavelmente Fowlie novamente, pois este adorava determinar a localização de espécies raras de orquídeas). Bem, nós não sabíamos (e se soubéssemos não a teríamos revelado para tal perguntador).

Cattleya dormaniana
Foto: Colibri Orquídeas

No entanto, a esta altura, nossas antenas estavam em alerta total e passamos os dois anos seguintes sutilmente questionando as pessoas da região sobre onde poderiam ser encontradas umas "parasitas marrom e púrpura".
Quando você está trabalhando em florestas originais não faz o menor sentido procurar por uma espécie rara em árvores vivas. Em primeiro lugar tais árvores tem 30 metros de altura ou mais. Em segundo lugar as árvores mais promissoras quase com toda certeza estarão cobertas por uma massa epifítica de outras plantas que poderia muito bem esconder uma mula por entre sua exuberância. Não, você tem que depender da sorte. Uma gigante anciã da floresta por exemplo, recém caída, pode nos trazer até 70 espécies de orquídeas e aquela que você procura pode estar entre elas. Ou um facho de luz do sol pode atingir uma colônia em flor no momento exato em que você está passando e, bingo! Você as achou! Foi assim que uma colônia soberba de Cattleya harrisoniana foi encontrada nesta região, há apenas um ano, 800 metros acima em altitude de onde se poderia esperar encontrá-las. Ou então você vai seguindo pela cumeeira entre as montanhas onde as árvores são geralmente baixas e retorcidas pelo vento e raramente tem mais do que 15 metros, o que torna fácil localizar e identificar as epífitas. Mas se o seu alvo não gosta do clima do topo da sera, então lá se vai sua sorte novamente.
Assim, cuidadosas indagações feitas às pessoas locais, particularmente aquelas engajadas no mercado clandestino de madeira, continuaram. Cortadores de madeira e caçadores tem muitos inimigos naturais e talvez os que eles mais temam sejam os conservacionistas, ecologistas, botânicos e sua laia. São ao contrário de alguns agentes governamentais, difíceis de subornar e normalmente evitados como a peste. Sendo assim, era preciso procurar por eles onde saciavam sua sede e criar uma artificial sociabilidade antes que as perguntas guardadas fossem cuidadosamente feitas. Foi num desses encontros em um boteco isolado de um destes vales que topamos com o filão. Um vale solitário foi mencionado e pensava-se que num pedaço específico da serra, em seu lado sul, havia a "parasita" em que estávamos interessados, mas, como eles agora nunca caçavam e nunca cortavam madeira (assim disseram), não podiam ter certeza.
Alguns meses depois fizemos nosso primeiro esforço para localizar o vale e então realizar uma busca sistemática em suas serras ao sul. O alvo estava a uma caminhada muito, muito longa, distante de nosso ponto inicial. Não havia trilha, mas, falando generalizadamente, matas primitivas não perturbadas são razoavelmente abertas ao nível do chão, assim seguíamos bem, mesmo que pelo primeiro quilômetro a subida fosse bem forte até alcançarmos a base do vale a 650 metros. Agora tínhamos que subir mais uma serra para atingir o vale que queríamos. Estava começando a ficar óbvio que isolamento era o que tinha protegido aquelas orquídeas, se elas realmente ocorressem por lá. Seguimos através da mata, para frente e para cima ao redor de uma montanha em forma de pão de açúcar até alcançar uma abertura que nos mostrou o vale abaixo. Uma esplêndida vista da base do vale de talvez uns 500 hectares, quase rodeada de elevados picos e a região coberta por um magnífico carpete da original floresta primitiva, intocada. Por acaso havíamos chegado no seu lado sul, mas então começou a chover como só acontece nas encostas do lado atlântico da área costeira. Havíamos passado seis horas subindo e descendo na mata. Era meio dia e a escuridão cai às seis horas nessas latitudes. Assim, com pesar, voltamos pelo mesmo caminho em que viemos e nos dirigimos para casa, aonde chegamos ao cair da noite, meio afogados pela chuva incessante e meio mortos pelas doze horas seguidas de ininterrupta caminhada pela floresta desconhecida. Mas ao menos havíamos encontrado o vale e seu lado sul. Dois anos se passaram antes que fizéssemos nossa próxima excursão séria. Um de nós, o intrépido (e mais jovem) Warren, havia feito duas outras tentativas na companhia de igualmente intrépidos botânicos ingleses e do incansável Girson e localizado as plantas, porém antes ou depois de floração.
C. dormaniana
Foto: perfildaplanta.blogspot.com
No entanto, neste ano entávamos determinados a chegar lá no auge de sua floração, e com tempo o bastante para estudá-las. Isto envolveria acampar no local, portanto separamos três dias para o projeto. Quando o incansável Girson apareceu em seu maltratado Volkswagen var. fusca álbum, estávamos mais que prontos para zarpar.
O outono havia chegado cedo naquele ano, uma enorme vantagem em termos de temperatura quando você está escalando montanhas com uma mochila pesada. Além disso, as chuvas pesadas de verão já haviam passado, o que significa que o pior que podíamos esperar seria chuvas leves e intermitentes ou umidade gotejante semi permanente, estando-se no meio de nuvens. partimos às 7:30h da manhã, sem muita pressa, já que o objetivo do dia era a confortável cabana do Girson, a dois terços do caminho de nosso objetivo final, onde passaríamos uma noite. Desta vez pegamos uma rota diferente. Uma trilha de mulas cortadas através e por cima de dois pedaços de montanha. Mais longo porém mais parecido com andar no chão e muito melhor que se embrenhar pela floresta. Chegamos à cabana antes das 11 horas.
Depois de almoçar fomos explorar a base desses vales, deixando nosso objetivo real para o dia seguinte. Que extraordinária coleção de orquídeas e outras plantas encontramos: quatro espécies não reconhecidas de Pleurothallis spp; duas Octomeria novas para nós, grandes quantidades de Cirrhea dependens e Xylophillum variegatum, uma nova Dichea, uma nova Maxillaria, um novo Epidendrum, duas espécies de Vanilla, duas espécies de Cryptoporantus, grupos maciços de Laelia crispa, Oncidium cruciatum, Oncidium ramosum e várias plantas de Dipteranthus grandiflorus, tão apreciadas pelos japoneses e, o mais excitante de tudo, uma enorme colônia de Warrea warreana, absolutamente confinada a uma grande subfloresta de bambu gigante (Taquaruçu no vernáculo local; provavemente Chusquea gaudichauddi Kunth). Este é certamente uma caso para estudo sobre simbiose, uma vez que a única outra colônia de Warrea que encontramos em Macaé de Cima se encontrava em situação similar. Pabst e Hoehne a atribuem a áreas mais secas do interior. Aqui ela se encontra crescendo em grandes quantidades, sob mais de 3.000 mm de chuvas anuais em local virtualmente pantanoso. Havia também as bromélias. Além dos exemplos gigantes de Alcantera imperialis, Vriesea hieroglyphica, Achmea fasciata, e uma grande canistrum sp, todas ao redor de uma queda d´água de 60 metros, as árvores adjacentes estavam cobertas por muitas espécies de Vriesea, Quesnelia, Tillandsia, Bilbergia, Neoregelia, Nidularium e outras que nós, orquidófilos, não reconhecemos. Muitos Jardins Botânicos deste mundo não mostram nem de longe a riqueza em vida epífitica daqueles dois ou três hectares de subvale.
Cirrhea dependens

Às 7:00h da manhã do dia seguinte partimos para Shang-ri-la, o vale perdido, e chegamos lá antes das 10:00 horas.



Warrea warreana

Girson havia aberto uma pseudo  picada ao longo da base da serra no lado sul, a uns 50 m do seu topo. Na metade se seu comprimento de 200m escalamos a face da rocha. Toda a parede de granito estava coberta por uma espécie gigante de Vrisea intercalada de Aechmea sp. Com efeito não fosse por essa floresta de bromeliáceas a face da rocha apenas seria escalável com equipamentos para alpinismo. Havíamos percorrido com dificuldade 10 m ao longo do meio dessa face da rocha, quando nos deparamos com a primeira e melhor colônia de Cattleya dormaniana, umas dezoito flores totalmente abertas, três hastes mostrando  flores duplas. Que fantástica visão, pela qual havíamos esperado tantos anos. Uma bela orquídea considerada extinta na natureza bem na frente de nossos olhos, muito saudável, numa esplêndida exibição. Passamos a vasculhar ao redor de nossos pés percorrendo os últimos metros com mãos e joelhos e a procurar locais melhores e ângulos menos precários para fotografar. A luz era fraca uma vez que estávamos em meio a nuvens e nossa fotógrafa odeia usar flash. Várias fotos foram feitas. Rezamos para que todas ficassem boas mas, como garantia, levamos quatro flores para fotografar calcamente ao voltar à cabana. Enquanto o processo de fotografar acontecia, a colônia era rodeada por beija flores, da espécie Phaethornis eurynome. Praticamente todas as flores haviam sido polinizadas, com ovários já inchando. Ainda assim as flores se encontravam em boas condições, um fenômeno que já vimos ocorrer com Sophronitis coccinea e que atribuímos ao fato de que colônias isoladas continuam a atrair o polinizador para as flores ainda não polinizadas através de uma constante massa colorida de longa florada. O beija flor antes mencionado certamente pliniza Laelia crispa, que existe em abundância na floresta ao redor, e também o vimos visitando Sophronitis cocinea.
Tropeçamos e rastejamos pelos 150 m restantes desse jardim de bromélias, em face de rocha quase vertical, encontrando quatro outras colônias de Cattleya dormaniana pelo caminho. Todas estavam floridas e quase todas as flores estavam polinizadas. Curioso que tais plantas só fossem vistas na base de uma espécie de arbusto da família das clusiaceae, provavelmente Clusia organensis, em troncos horizontais crescendo para fora do morro quase vertical, a não mais do que dois metros da base do tronco, na sombra com nenhuma luz direta do sol e sobre esse jardim intenso de grandes bromélias, cuja massa, com a grande acumulação de água no inteior de cada "roseta", cria um ambiente constatemente úmico, mesmo nos dias secos. O posicionamento nos troncos horizontais das árvores permite que as plantas se beneficiem diretamente dos ventos ascendentes carregados de neblinas, que prevalecem na região, bem como de qualquer brisa disponível. Curiosamente, não encontramos traços das quatro políneas estéreis e atrofiadas que aparentemente esta espécie apresenta, mas apenas aquelas quatro normais, parecendo muito saudáveis.
Um dia magnífico. Evitamos a leve tentação de coletar qualquer planta e então, virtuosos, marchamos de volta à cabana do Girson, comemos vários quilos de macarrão instantâneo (parece que da marca ki-nojo...) e domimos o sono dos justos no duro chão de madeira. E sonhamos com a próxiam expedição, para encontrar a Laelia pumila, pois corre o rumor de que ela vive em outras montanhas apenas um pouquinho além de "Shang-ri-la".
Artigo publicado no Boletim CAOB Nº 29 - jul/ago/setembro 1997.

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